15/06/2020
Coronavírus: enfermeira desabafa sobre incentivo de Bolsonaro a invasões em hospitais

Na tarde de 4 de junho, a enfermeira Carla, que trabalha no Hospital de Campanha do Anhembi, em São Paulo, notou uma movimentação estranha enquanto voltava do horário de almoço. "Havia muitas pessoas na porta. Observei muita gente entrando no hospital sem colocar a roupa própria para proteção", relata a profissional de saúde à BBC News Brasil.

Pouco depois, ela descobriu que se tratava de uma "invasão" de deputados estaduais de São Paulo ao hospital. Mesmo sem autorização, eles tentavam entrar no local para, segundo os parlamentares, "fiscalizar" e "apurar possível má utilização de recursos públicos".

"Eles agiram como se os profissionais de saúde fossem criminosos. Nos sentimos desrespeitados. Foi uma situação vexatória. Não poderiam fazer aquilo. É importante fiscalizar o uso de dinheiro público, mas aquela não era a forma correta para fazer isso", declara Carla.

A profissional de 45 anos, sendo 22 deles atuando na Enfermagem, classifica o momento como a situação mais vergonhosa e desrespeitosa que viveu na linha de frente do combate ao novo Coronavírus (Covid19). Ela confessa que teme passar por situação semelhante nos próximos dias, após ler uma declaração que o presidente Jair Bolsonaro deu na noite da quinta-feira (11). Durante uma live, ele incentivou seus seguidores a invadirem hospitais e filmarem o que encontrarem no interior.

"Tem hospital de campanha perto de você, hospital público, arranja uma maneira de entrar e filmar. Muita gente está fazendo isso e mais gente tem que fazer para mostrar se os leitos estão ocupados ou não. Se os gastos são compatíveis ou não", disse Bolsonaro, sem acrescentar qualquer prova de que os recursos tenham sido mal utilizados. Também sem apresentar qualquer prova, o presidente insinuou que os números da Covid19 estão sendo manipulados por prefeitos e governadores para "ganho político".

Carla considera que a declaração de Bolsonaro pode dificultar ainda mais a batalha contra o novo Coronavírus no Brasil, que tem mais de 41 mil mortes. "Ele está incentivando a baderna, o desrespeito ao próximo e ao profissional de saúde", diz. Ela afirma que as apurações sobre supostas fraudes nas gestões de hospitais devem ser feitas por autoridades responsáveis, como a Polícia Federal. "As pessoas não podem invadir um hospital, sem qualquer permissão para filmar o local e os pacientes", declara a enfermeira, que ressalta que não é permitida a entrada de pessoas sem autorização em hospitais.

"Um dos grandes problemas é que muitas pessoas podem, como no caso dos deputados, filmar e mostrar apenas o que lhes interessa. Eles filmaram os rostos dos pacientes e causaram muito constrangimento. Depois, foram para áreas desabilitadas e compartilharam como se o hospital estivesse vazio", diz.

Riscos de invasões - Os profissionais de saúde temem que a prática de invadir hospitais para filmar os locais se torne comum, após as declarações de Bolsonaro. Nesta sexta-feira, segundo relatos do jornal O Globo, houve uma invasão no hospital Ronaldo Gazolla, em Acari, no Rio de Janeiro.

"Essa fala dele faz com que muitas pessoas deixem de acreditar nos profissionais de saúde. Quando o mandatário do país, que teoricamente teria as melhores informações, pede para as pessoas invadirem os hospitais, gera desconfiança em muitos. Muitos podem acabar acreditando nessa bobagem que ele fala", afirma o médico intensivista José Albani de Carvalho, que atua em UTIs de quatro hospitais públicos de São Paulo.

Albani frisa que há grandes riscos de contaminação para as pessoas que entram em hospitais sem os devidos equipamentos de proteção. "Para uma pessoa entrar na UTI ou em enfermarias para pacientes com a Covid19, é preciso saber que todos os pacientes estão infectados. Os profissionais de saúde têm contato com esses pacientes estão devidamente paramentados com óculos, proteção facial, máscaras específicas e roupas adequadas", ressalta.

"Uma pessoa que entra sem a devida proteção pode ser infectada e sair disseminando ainda mais o vírus", acrescenta o especialista. Ele classifica a declaração de Bolsonaro como uma "tremenda imbecilidade".

Carla também cita os riscos sanitários ao invadir uma área destinada a pacientes com a Covid19 sem os devidos aparatos. "Os deputados, por exemplo, queriam entrar sem proteção. Foi necessário muita discussão até que eles usassem algo. O hospital é o local em que as pessoas estão em estado grave e a disseminação do vírus é muito grande, por isso muitos profissionais da saúde estão sendo infectados", diz.

Ela admite que está com medo de que o hospital de campanha seja alvo de nova invasão nos próximos dias. "Com o incentivo do presidente, essa situação pode se repetir. É assustador pensar nisso. É como se todos os dias houvesse o risco de vivermos aquela situação de novo. Não queria ter passado por um momento tão constrangedor como aquele. Nos sentimos desrespeitados. Foi totalmente desagradável. Ficamos sem saber o que fazer", declara.

"Os profissionais de saúde estão lá para cuidar dos pacientes. As questões políticas não devem ser tratadas dentro do hospital", diz Carla.

Fonte: BBC
Foto: Reuters


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