Não se assuste com o cenário imaginado pelo epidemiologista Ricardo Kuchenbecker. O médico supõe que uma pessoa sadia, sem necessidade de internação, fique por uma semana num quarto de hospital, como se fosse um paciente. Dois dias depois da baixa, a flora bacteriana do internado estará alterada, mesmo que ele não se submeta nem a uma injeção. \r\n\r\nAs bactérias do ambiente poderão ser identificadas, por exames, na pele e na mucosa do falso paciente. É assim que a flora hospitalar se revela, cotidianamente, viva, ativa e às vezes mutante. Mas nada disso quer dizer que o paciente irá adoecer pela ação das bactérias. A grande maioria não adoece. O que Kuchenbecker propõe com o cenário é que um hospital sempre foi, por natureza, o ambiente dessas vidas invisíveis. Não há hospitais sem bactérias.\r\n\r\nDesde 2003, o médico monitora os microorganismos do Hospital de Clínicas, de Porto Alegre. Coordena a Comissão de Controle de Infecção, com 18 profissionais que vigiam a flora ali alojada. Desde fevereiro do ano passado, enfrenta no Clínicas a Acinetobacter sp, a bactéria que se instalou em hospitais e vem assustando os gaúchos. O médico diz:\r\n\r\n- Um hospital tem bactérias porque é uma casa de doentes, aqui, em Cleveland ou em Boston.\r\n\r\nO surto de Acinetobacter sp é o novo desafio de Kuchenbecker, 39 anos, doutor em epidemiologia, médico do Clínicas e professor da UFRGS. O especialista assessora, desde maio do ano passado, a Secretaria Estadual da Saúde na tentativa de debelar o surto da bactéria no Hospital Conceição. A Acinetobacter sp não é considerada a mais mortal das bactérias. Mas é, no momento, uma das mais incógnitas e traiçoeiras. A tarefa de Kuchenbecker, além de contribuir para que o surto seja controlado, é assegurar que se faz o melhor para reduzir a incidência do microorganismo. Kuchenbecker também ataca o alarmismo.\r\n\r\nMicroorganismo existe há séculos ou milênios\r\n\r\nA Acinetobacter sp apresentou-se à equipe do Clínicas em fevereiro, onde nunca havia sido identificada. Um paciente estava infectado. Em abril, outros casos foram registrados. A Comissão de Controle de Infecção Hospitalar mobilizou uma força-tarefa e conseguiu estancar a proliferação. O Clínicas, com 749 leitos, fechou 2007 com os mais baixos índices de infecção hospitalar dos últimos seis anos, considerando-se todos os indicadores avaliados. Mas a Acinetobacter sp, identificada em outros 14 dos 24 hospitais de Porto Alegre que prestam serviços ao SUS, continua ali. Hoje, no Clínicas, são seis pacientes colonizados (com a bactéria, mas sem infecção) e três infectados, sob tratamento.\r\n\r\nÉ muito? Kuchenbecker diz que não. De cada 10 infecções no Clínicas, cinco são pela bactéria Staphylococcus aureus. As outras cinco são por outros microorganismos, como Escherichia coli, Klebsiella pneumoniae e Pseudomonas aeruginosa. A Acinetobacter sp aparece entre essas outras 50%, geralmente localizada em áreas com pacientes gravemente debilitados.\r\n\r\n- Este é um bicho de UTI - diz.\r\n\r\nO bicho é antigo. Foi identificado em 1911, mas existe há séculos ou milênios. Estudos recentes revelam que virou preocupação, não só de nações tropicais e pobres, nos últimos três anos. Soldados americanos que lutaram contra o Iraque, quando Saddam Hussein invadiu o Kuwait, e contra os talibãs no Afeganistão retornaram infectados pela Acinetobacter sp.\r\n\r\nA bactéria que apareceu em 2005 em Porto Alegre é resultado de mutações ocorridas nos últimos 10 anos e resiste aos antibióticos. Como é um fenômeno recente, traz junto uma interrogação: até que ponto contribui para a mortalidade de pessoas em UTIs? Kuchenbecker está certo de que ainda não temos um amplo estudo sobre mortalidade.\r\n\r\nOutra interrogação dificilmente terá resposta segura: de onde saiu a Acinetobacter sp que desembarcou no Estado? A bactéria circula principalmente de um hospital para outro pegando carona em pacientes e profissionais. Pode migrar de um ambiente para outro dentro da mesma instituição, como é capaz de atravessar continentes. O médico diz:\r\n\r\n- A multirresistência bacteriana, mais do que a economia, é hoje o melhor exemplo da globalização.\r\n\r\nCom muitos leitos, Capital é propícia à infecção hospitalar\r\n\r\nHá um paradoxo nisso tudo. Quanto mais a Medicina e os procedimentos hospitalares evoluem, mais as bactérias se reciclam. Processos complexos que salvam uma pessoa, como um transplante, e longos períodos de internações, combinados com o uso muitas vezes indiscriminado de antibióticos, favorecem os microorganismos. Por isso, Porto Alegre é - como a capital com maior índice de leitos de alta complexidade do país - um reduto propício à infecção hospitalar. É a cidade gaúcha dos transplantes, das cirurgias cardíacas e neurovasculares. \r\n\r\nKuchenbecker não vê como debelar surtos como o atual sem levar em conta a sobrecarga desse atendimento mais complexo e sem ações rápidas e articuladas por toda a rede de saúde e hospitalar. São iniciativas que não podem se ater à faxina de ambientes infectados ou ao isolamento de pacientes, mas ao aperfeiçoamento de processos de controle, como o Clínicas fez no ano passado ao defrontar-se com a Acinetobacter sp (veja no quadro).\r\n\r\nConsultor do Ministério da Saúde para a cooperação internacional em aids, o epidemiologista persegue, no Clínicas e no Conceição, o precário equilíbrio da flora ambiental, respeitando a ecologia de cada um:\r\n\r\n- Isso aqui é um ecossistema muito delicado. Um hospital sem bactérias é um hospital fechado. \r\n\r\n(moises.mendes@zerohora.com.br)\r\n\r\n |