18/09/2019 - Por que a saúde sexual das lésbicas ainda é tabu |
Mulheres que transam com mulheres têm falsa segurança em relação a ISTs |
Toda mulher que já foi a uma consulta ginecológica certamente já ouviu sobre métodos contraceptivos - mesmo que ela transe exclusivamente com outras mulheres. A invisibilidade da orientação sexual das pacientes nos consultórios é um problema de saúde porque significa maior risco de contrair Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) entre lésbicas. - Na maioria das vezes, os profissionais não perguntam sobre a orientação sexual. Quando perguntam e a paciente diz que é lésbica, a conversa cai num limbo, acaba - diz Pâmela Soares, enfermeira residente em saúde mental na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do Virgínias, coletivo de Porto Alegre que trabalha pelos direitos das mulheres. O silêncio dos profissionais tem origem em uma formação deficitária sobre questões de diversidade sexual. Poucos cursos da saúde oferecem disciplinas que abordem a temática. Um estudo publicado em 2016, feito por pesquisadoras da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), revelou que, nas 38 universidades federais pesquisadas, apenas três faculdades de medicina ofereciam uma disciplina sobre sexualidade, e não necessariamente com enfoque da diversidade. A invisibilidade histórica do tema na formação dos médicos reflete em despreparo na hora de atender a população LGBT+ e desinformação entre profissionais e pacientes. No caso das lésbicas, há uma crença equivocada de que elas estão a salvo de ISTs e de câncer de colo de útero. É fato que o sexo com penetração oferece maior risco, observa a ginecologista e professora da Universidade Estadual do Piauí, Andréa Rufino. Mas mulheres que se relacionam com mulheres também podem contrair sífilis, HIV, HPV e outras doenças comuns, como candidíase. Essa falsa sensação de segurança afasta as lésbicas dos consultórios. Uma pesquisa publicada em 2018 e coordenada por Rufino apontou que, das mulheres que transam exclusivamente com outras mulheres, 38,9% vão ao ginecologista anualmente; o índice entre mulheres bissexuais foi de 70,8%. Os resultados da pesquisa fazem soar o alerta para o risco de ISTs entre lésbicas, já que foi observado baixo uso de métodos de barreira, como camisinha. Entre as lésbicas, apenas 6,1% responderam que usam camisinha ou outro método de barreira no sexo oral com mulher, e 28,3% afirmaram usar no sexo vaginal (com uso de brinquedos). Cuidado com as unhas e espéculo pequeno Rufino atende mulheres nas redes pública e privada. Coordenadora do ambulatório de sexologia da UEPI e referência em sexologia LGBT no país, a médica é bastante procurada por mulheres lésbicas. Para ela, o enfoque do profissional que vai orientar sobre prevenção deve estar nas práticas sexuais das pacientes. Independentemente da orientação sexual, o sexo com penetração com pênis (a expressão não é redundante se você lembrar que existem brinquedos sexuais) oferece mais risco de ISTs, possibilidade sempre maior para quem recebe. Além disso, sexo anal tem mais risco do que o vaginal. - A partir do que ela me conta, posso orientá-la adequadamente e realizar exames que não seja dolorosos - explica Rufino. Se a paciente compartilha vibradores, por exemplo, algo comum entre mulheres, é preciso alertar para a troca da camisinha que protege o brinquedo. Se usa os dedos para masturbar a parceira, precisa cuidar das unhas - quando grandes, elas podem abrir feridas que viram porta de entrada para vírus. Se a paciente nunca teve sexo com penetração, ou seja, tem o hímen intacto, é possível usar um espéculo de tamanho adequado. O instrumento é utilizado no exame Papanicolau, que coleta material do colo do útero para prevenção do câncer na região. O menor deles chama-se virgoscopio, segundo Rufino. A enfermeira Pâmela Soares nunca viu um, só ouviu falar. No próximo dia 31, ela vai ministrar a terceira edição da Oficina de Saúde Sexual de Mulheres Lésbicas e Bissexuais, promovida pelo Coletivo Virgínias, desta vez em Esteio. No evento, são abordados riscos de ISTs no sexo entre mulheres e apresentadas alternativas de prevenção contra ISTs - ou “gambiarras”, como diz Soares. Sim, gambiarras. Afinal, os métodos preventivos são projetados para as relações heterossexuais. - Não existe método cem por cento seguro. Nas oficinas, reforçamos que, sim, essas mulheres correm risco de contrair ISTs e mostramos como reduzir danos com o que temos disponível no mercado - explica Soares. Entre os métodos improvisados, é muito comum o uso de plástico-filme, não recomendado por não ser um corpo estéril como uma luva cirúrgica, que poderia ser usada na masturbação, por exemplo, de acordo com a enfermeira. Um material indicado como barreira para sexo oral é o “dental dam”, que são folhas de látex ou poliuretano. Apesar de feitas para uso odontológico, essa “gambiarra” é chancelada pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos. Medicina da UFRGS tem nova disciplina Apesar de episódios de constrangimento nos consultórios ginecológicos ainda serem comuns, surgem esperanças de avanço. Em 2017, foi redigida uma proposta de recomendação à Associação Brasileira de Educação Médica para o ensino do tema sobre gênero e orientação sexual nos currículos médicos. O documento foi fruto de uma oficina sobre a saúde da população LGBT+ realizada em Porto Alegre durante o 55º Congresso Brasileiro de Educação Médica. A temática da diversidade sexual está mais presente nos debates entre os profissionais da saúde, afirma a professora da pós-graduação da Unisinos Maria Letícia Ikeda, signatária da carta. Contudo, para ela, o sexo entre mulheres é ainda mais tabu do que entre homens. Para o imaginário social, elas existem para reproduzir, diz a docente, e as lésbicas não seriam mães, logo, são absolutamente invisíveis. Neste ano, a Faculdade de Medicina da UFRGS inseriu na grade curricular a disciplina Gênero, Sexualidade e Saúde. A novidade chega cinco anos depois que as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina passaram a incluir a temática de diversidade de orientação sexual. Lecionada por Daniela Knauth, professora há 24 anos na UFRGS, a disciplina ainda não é obrigatória. - Foi uma demanda de alunos que encontraram sensibilização na diretoria. Antes, eu abordava o tema em uma única aula em uma disciplina obrigatória sobre saúde e sociedade - conta a professora. Além de não identificarem abertura por parte dos médicos para informar sobre suas práticas sexuais, as lésbicas também se calam por medo de serem constrangidas ou discriminadas. Na tentativa de sensibilizar e capacitar profissionais da saúde que atuam na rede de atenção primária, a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, junto da LBL e do Núcleo de Pesquisa em Antropologia do Corpo e da Saúde da UFRGS, publicou, em 2011, diretrizes para a assistência à saúde de mulheres que fazem sexo com outras mulheres. O protocolo recomenda que, antes de perguntar sobre contracepção, o ginecologista pergunte sobre a vida sexual da mulher e seus parceiros ou parceiras. Afinal, se uma mulher só transa com mulher, inexiste a preocupação com uma gravidez indesejada. Uma das lutas da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) é incentivar que as mulheres procurem os serviços de saúde. Para Carol Bastos, estudante de Saúde Coletiva na UFRGS e articuladora da LBL no Rio Grande do Sul, a presença de lésbicas nos consultórios ajudaria a gerar indicadores que serviriam para aprimorar os atendimentos. - Políticas públicas só recebem atenção a partir de dados. Se não tem lésbicas indo nas consultas, não tem como mostrar, com dados, que o atendimento é precário. Fonte: MARCELA DONINI/ Jornal Zero Hora |